A Festa do Parazinho

crônica cultura

por: *Raimundo (Pompe) Magalhães



Há quem considere o passado um elástico temporal, na medida em que está sempre a se repetir na memória das pessoas, sobretudo daqueles que viveram na intensidade da sua plenitude. E para fazermos uma viagem no tempo, escolhemos um dos nossos acontecimentos mais marcante: “A Festa de Nossa Senhora do Livramento do Parazinho”.
Vejo pelos olhos da memória e recordações sentidas o tempo onde todos ansiosamente aguardavam o início dos festejos. A felicidade se manifestava na alma e no coração do povo, que todo ele palpitava numa sugestão de alegria. A festa era de todos. Desde a criança que sonhava em aproveitar os dez dias de intensa animação, aos mais velhos, alguns já curvados pelos anos, com os olhos marejados de saudade ao recordar seu tempo de mocidade.

A cada ano a Festa ostentava mais fulgor. Durante todo o período festivo, o tristonho e sonolento Parazinho transformava-se num lugar vibrátil e trepidante. Uma massa incomputável enchia o lugarejo. Vinha invariavelmente gente dos mais diferentes lugares. Até de outros Estados. Os que vinham de longe chegavam em lotações do tipo “Jardinheiras” e “Mistos”, meio de transporte bastante comum naquela época, e ficavam alojados em redes, nas próprias carroçarias dos caminhões.
A viagem não era muito prazerosa. Faltava terraplenagem e, portanto, sobravam buracos na sua antiga estrada. Mesmo assim, jipes, caminhonetas e caminhões paus-de-arara, apinhados de gente, depois de atravessar o rio Coreaú, aqui na Granja, ainda com muita água, invadiam aquela carroçável estreita e tortuosa, deixando o rastro fulgaz de poeira naquela paisagem buliçosa.
Meu pai era “choffer” de praça e possuía um velho jipe, ano 54, de fabricação americana. Desde criançola eu adorava acompanhá-lo nas suas viagens ao Parazinho. Lembro-me que durante as quatro léguas de percurso, era comum se encontrar pessoas a cavalo e outras dezenas a pé, com direito a descanso naquela velha casa alpendrada, no “Mato Grosso”. O areal seco da estrada exauria as canelas dos devotos, que só sentiam alivio quando avistava as “cruzinhas”. Era sinal que a caminhada estava quase no fim.

Mas nem a exaustiva caminhada, nem os sacolejos e balanços das carroçarias dos caminhões eram suficiente para roubar o ânimo dos fiéis que, com as roupas e os cabelos embatumados de poeira, invadiam as ruas da antiga povoação, alegres e trêfegos, como um “pierrô” em baile carnavalesco.

A entrada era pelo mesmo lugar. De longe dava para se ouvir os foguetes pipocando no ar e o timbre sonoro e forte do sino da igreja chamando os fiéis para a oração. Em pouco tempo a igreja estava “tinindo” de gente para participar das missas e novenas, soleníssimas. Parece que estou vendo os vivas exaltados, as procissões ruidosas e os leilões concorridíssimos, num atestado eloqüente da mais acentuada fé. Relembro com saudade aquela magnífica banda de música executando lindos dobrados nas alvoradas frias de junho, numa harmonia inebriante na sua riqueza de ritmos e de sons, cujas músicas ainda me soam os ouvidos. Quanta coisa bonita, pontilhada de ternura!

Quando me apercebi da vida e comecei a raciocinar o vigário era o padre Benedito Albuquerque, que com simpatia e jeito recebia seu rebanho. Ouço muito falar da época em que monsenhor Vitorino era vigário, porém a minha pouca idade não me permite lembrar desde ilustre conterrâneo. Consoantes os que me afirma, era um homem respeitado por todos e, portanto, seu nome merece ser lembrado. Deixou este mundo, faz anos.

Após as solenidades religiosas, do lado de fora da igreja maior e ao redor da igrejinha vestuta, matutinhas cheirosas, vestidas de chita, travavam namoro de respeito. Era tempo de austeridade, de vergonha. Hoje é que é esse agarrado nu, às claras.
Enquanto isso, naquelas ruas pedregosas, muita gente pra lá e pra cá, de barraca em barraca. Tinha vendinhas de tudo. Desde as humildes barraquinhas que vendiam coisinhas miúdas, bugigangas, quinquilharias, etc., às luxuosas barracas dos joalheiros, onde a luz dos “Petromax” brilhava nas jóias e miçangas caprichosamente expostas em mostruários forrados na mais fina vaqueta vermelha, semelhando-as a um tesouro. Havia todo tipo de novidade: medalhas, trancelins, correntes, brincos, alianças de noivado e anéis de luxo encimados por enormes pedras coloridas.

Da Viçosa vinha os comboieiros de sempre, trazendo nos grajais, além de muitas frutas e verduras, uma ruma de batidas, tijolos, bolos “manuê” e também alguidar, panelas, potes e jarras de todo tamanho, tudo feito do mais puro barro.
Havia também os fotógrafos ambulantes e suas máquinas lambe-lambe, montadas sobre um tripé de madeira, onde a matutada se comprimia para tirar um foto exibindo seu “pincenês” de lentes escuras, junto aqueles painéis pintados com a imagem do taumaturgo São Francisco do Canindé. Meninos, como eu, eram doidos para se fotografar montado naqueles cavalinhos de madeira.

Para os que pouco lia, havia os vendedores dos livretos de literatura de cordel. E para animar, os violeiros e fazedores de rimas no mais autêntico improviso desfilavam seus repentes ao gosto do freguês. Até os botadores d’água paravam seus jumentos com ancoretas e tudo, e ficavam de queixo caído na admiração aos repentistas, enquanto os níqueis iam caindo, uma a um, nas suas “coités” dos poetas. De vez em quando se ouvia vozes diferenciadas. Eram os vendedores de ervas, raízes e daquelas célebres pomadas “milagrosas” que acabava de identificar na platéia mais um portador de uma enfermidade capaz de ser curada pelo produto em questão. Tinha remédio para todo tipo de “murrinha”.

Naquele tempo não havia festinhas, sambas. O vigário impedia tudo isso e o povo, passivamente, aceitava, com medo de ser enquadrado na categoria de subversivo. Que eu me lembre, os arrasta-pés só passaram a acontecer já de uns anos para cá, mais isso só no “Rabo da Gata”, do outro lado da parede do açude público, construído na seca de 15.

Uma noite de vadiagem, eu, em companhia de outros rapazolas, resolví escramuçar naquele palco furduncento, onde funcionava o bagaço que glorificava a “cana”. Acabei me influindo para aprender a dançar, para depois, entrar nos bailes da chamada sociedade, aqui na Granja e fui parar no “Salão” do seu Paixão. Ali arrisquei os primeiros passos, mas logo no início desisti dos ensaios. Tudo não passou de um malogro, de um fiasco, para não dizer de um desastre a minha estréia na arte coreográfica, pois logo nos começo acabei pisando nos pés do meu primeiro par, uma cabrocha da “Tiáia”, que reclamou aperreada, com os dedos todos pisados, e eu capitulei, abandonando a idéia de ser dançarino. Foi nesta mesma noite assisti, pela primeira vez na vida, um ensaio de briga de faca. Apavorado, dei uma baita carreira, ganhando o bredo, descendo, aperreado, aquelas ruas rampadas.

Mas a diversões preferidas da eram mesmo as banquetas de jogos e os “botes” do seu Toinho Ubatuba, que todo ano ficavam instalados no largo na entrada da rua principal. Matuto ali era como confete. Todo ele pronto para se balançar naquelas barquetas de madeira.


*direitos reservados ao autor. Publicado no Jornal Lira Granjense

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Comentários

  1. Prezado Raimundo,
    Gostei muito de sua crônica. Sou granjense e moro fora a mais de 40 anos, mas lembrei-me de quase tudo... Inclusive de ter andado no jipe do seu pai, quando meu pai alugava para irmos na fazenda do meu avô... Gostaria de ter seu e-mail para que eu possa fazer novos contatos, inclusive ter notícias de Granja.
    Meu e-mail é: saldneto@terra.com.br
    Meu nome: Saldanha Neto

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